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O ALBUM CHOROGRAPHICO E AS PEQUENAS CRÔNICAS DA CIVILIZAÇÃO E DO PROGRESSO

Maria do Carmo Andrade Gomes
Fundação João Pinheiro

Parte de um ambicioso projeto cartográfico, estatístico e editorial, que não se efetivou plenamente, tanto o Atlas Chorographico como o Album Chorographico Municipal foram publicados inacabados, sem os respectivos textos corográficos com os quais foram concebidos. No longo e irregular processo de sua elaboração, até a publicação do que seu próprio realizador – Mário Augusto Teixeira de Freitas - considerou um fragmento, estas obras foram atravessadas pelas circunstâncias históricas, sua função foi revista, novos significados foram produzidos. Desfeita a pretendida ligação orgânica entre texto e imagem cartográfica - cada mapa seria acompanhado por uma monografia do município -, ainda assim o Atlas e o Album Chorographico restaram como fontes preciosas para a compreensão do sentido dado e compartilhado pela celebração da efeméride do centenário da independência e do papel nele exercido pelos mapas enquanto meios de comunicação e instrumentos de convencimento e de maravilhamento.

O Album Chorographico pode ser considerado como um conjunto de imagens nas quais a representação visual conjuga a função informativa com um estímulo acentuado à percepção e fruição estética. Nos mapas dados a ver, na expressão de C. Jacob[1], é pelo desejo de contemplação das formas artísticas dos mapas que se promove a sua ressonância social e, consequentemente, a veiculação dos conteúdos simbólicos nelas implícitas, conferindo-lhe o sentido de um monumento.

Mas assim como o Atlas que o antecedeu, e do qual se diferenciava pela ausência das tabelas estatísticas, o Album Chorographico surgiu também como um produto fundado na dupla autoridade, científica e de estado, do conhecimento veiculado em suas tabelas e imagens. Os 178 mapas que compunham o Album eram reproduções impressas de quadros aquarelados, em sua maioria com ilustrações a bico de pena que retratavam cenas urbanas, paisagens naturais e outros marcos identificadores da área cartografada. Embora dentro de um padrão geral, o tratamento estético dispensado aos mapas era desigual, assim como o volume das informações. Segundo Teixeira de Freitas[2], as ilustrações foram feitas a partir de fotos enviadas pelas próprias autoridades municipais convocadas a colaborar, as quais forneceram também as plantas urbanas de suas sedes. Esse procedimento de recolha junto às municipalidades certamente contribuiu no reforço ao sentido simbólico dos conteúdos, embora tenha sido possível identificar algumas imagens oriundas de outras fontes.[3]

Apesar de seu caráter inacabado, fragmentário e multiforme, o Album guarda coerência e sentido enquanto uma totalidade, que se superpõe aos diferentes significados que cada carta contém em si. O caráter icônico ou indexical das centenas de imagens dos municípios que povoam cada mapa, através do qual o observador pode identificar feições urbanas ou rurais dos municípios, cede lugar, no seu conjunto, ao caráter eminentemente simbólico que presidiu o projeto e a produção da obra. Esse forte conteúdo simbólico está expresso especialmente na seleção das imagens que representam valores como urbanidade, progresso, conforto, civilização e natureza exuberante, imagens mentais que povoaram os diferentes discursos orquestrados pelo programa oficial de celebrações do centenário da independência. Para além da coerência formal e do conteúdo de cada mapa municipal, era função do Album, no contexto em que foi concebido e elaborado, contribuir na construção de um outro discurso, relativo à  integração e  identidade regional, reinserindo cada localidade numa totalidade espacial e política maior, o estado de Minas Gerais.

Duas tradições cartográficas muito difundidas nas últimas décadas do século XIX puderam ser identificadas como modelos apropriados e reelaborados para a concepção do Álbum: a dos atlas regionais franceses e a dos county maps e county atlas norte-americanos. Os chamados county maps, ou mapas do condado, eram mapas locais de grande escala que se tornaram importantes instrumentos na construção da identidade das comunidades locais americanas. Esses inseriam a carta ilustrada no centro da composição, circundada por tabelas, plantas, esboços biográficos e retratos dos proprietários locais, empresários, políticos, assim como caprichosas vistas dos prédios públicos, privados e comerciais.[4] Na tradição dos atlas departamentais franceses da segunda metade do século XIX, produtos de uma geografia romântica, essa evocação de uma paisagem idealizada, pitoresca, monumentalizada, era tão forte que as relações entre o mapa, os textos e as ilustrações marginais não poderiam ser estabelecidas em termos de hierarquia ou prioridade visual. [5]

A composição de cada mapa do Album mostra um enquadramento definido pelas coordenadas (latitude e longitude), que circunscreve um tecido topográfico, destacando em linhas e tracejados e em tonalidades de cor os contornos dos distritos e do município. Diversos elementos extrapolam os limites gráficos da circunscrição municipal e projetam-se discretamente sobre o plano geral do quadro, como a rede hidrográfica, os caminhos e estradas, registros de altitude e toponímia. Esse detalhe produz o efeito visual de suavizar os referidos limites e refundir o município em um tecido espacial maior, apenas insinuado, ao qual o município parece ligar-se através daqueles elementos.

Em torno da figura central do município, dispõem-se diferentes quadros: estatísticas de população e extensão territorial, posição do município no estado, planta da cidade-sede distrital, legenda, posições geográficas conhecidas e ilustrações. As escalas dos mapas oscilam consideravelmente, de acordo com a extensão de cada município[6], de acordo com as possibilidades de seu enquadramento em um espaço de proporções relativamente fixas. A escala submetia-se ao projeto estético do mapa, com ênfase na centralidade e na visibilidade da representação.

Os quadros que circunscrevem a composição central, como uma segunda margem, são demarcados por molduras bem definidas, compostas por ornatos geométricos e florais. Alguns enquadramentos conjugam os estilemas a composições figurativas de claro sentido simbólico, como exemplifica o mapa de Araxá.[7]

Os registros de dados numéricos e toponímicos espalham-se sobre a superfície da imagem. Alguns elementos da paisagem natural, passíveis de representação nas escalas da paisagem gráfica, são enfatizados nas cartas, como rios e serras. Entre os elementos da paisagem humana, objetos de uma seleção consciente, como apontou Harley[8], destacavam-se as linhas de caminhos, fossem estradas de ferro, construídas ou em construção, fossem as de automóveis ou de carroças, tecidas sobre a superfície do município, e superpostas às linhas dos rios, dos telefones e dos telégrafos. Dois outros ícones distribuíam-se pelas cartas e guardavam estreita relação com a rede de caminhos: aqueles relativos aos correios e à navegação. A imagem do território municipal assim estruturada enfatizava a existência de uma rede de transportes e de comunicações que traduzia e generalizava a ideia, ainda que desigual entre os diversos municípios, de um território unificado, coeso, acessível. Transportes e comunicações certamente significavam o progresso a caminho.

A rede toponímica inscrita no interior do mapa era hierarquizada pelo efeito visual dos tamanhos e espessura dos nomes, valorizando fortemente as sedes urbanas de cada circunscrição em relação à toponímia dos rios e serras. No conjunto eram os elementos da ordem administrativa e os equipamentos humanos do progresso que se destacavam.

No repertório de imagens das ilustrações, desfilam os símbolos caros ao discurso progressista, exaltador e promissor da obra. As paisagens urbanas e seus equipamentos são muito mais numerosos do que as naturais. As instituições oficiais como câmaras municipais, igrejas, fóruns e hospitais aparecem na grande maioria dos mapas. São significativas as imagens dos equipamentos relativos ao conforto, ao progresso e à modernidade urbana como captação de água, iluminação elétrica, estações de bondes, teatros e agências de correios.

Uma representação recorrente eram as fachadas das escolas, especialmente do ensino fundamental, os chamados grupos escolares. A existência de escolas, da instrução pública, era condição primeira de ingresso do lugar na civilização. Nos mapas de Abre Campo e Botelho a reprodução das fachadas das escolas foi emoldurada por símbolos do saber e da ciência (globo, livro, mapa, régua, compasso e uma chama).

Na multiplicidade de planos e pontos de vista que o Album oferecia, uma outra série cartográfica foi constituída: são 75 plantas urbanas, em sua maioria das sedes municipais, em diversas escalas e níveis distintos de informação. Essa cartografia urbana, se somada às cenas e vistas panorâmicas das cidades, que totalizam mais de uma centena de imagens, permitem concluir que, para os organizadores do Album, era no cenário urbano que se inscreviam os principais símbolos de identidade, de progresso e de civilidade, nos termos então propostos.

Mas as narrativas contidas no Album também incluíam elementos significativos das paisagens naturais e rurais, em estreita conexão com os aspectos em foco nos cenários urbanos. Os elementos da paisagem física eram apresentados ora como monumentos naturais a balizar territórios e fronteiras, ora como recursos naturais passíveis de aproveitamento pelo homem como os rios, para sua navegação, e muito especialmente as cachoeiras e saltos, fontes preciosas para a captação da energia elétrica.

No mapa de Januária, o elemento predominante provinha do cenário natural: o Rio São Francisco domina a representação, cortando o município com uma larga faixa azul claramente fora da escala. O mapa faz prevalecer a força integradora e civilizatória do grande rio – os topônimos revelam uma rede urbana que se estende ao longo de suas margens, compondo um outro rio de pequenos núcleos cujas margens revelam os sertões desabitados, distantes do progresso: a região deserta semi-árida de um lado, os cerradões do Mangabeira, de outro. As ilustrações do mapa, alusivas ao comércio e trânsito ribeirinho, reforçavam a idéia de uma civilização ancorada no rio.

A questão do aproveitamento do potencial hidroelétrico estava em pauta desde os anos 1910. A bacia do Rio Grande, com seus diversos saltos, era considerada a área do estado mais rica em hulha branca, como afirmou o deputado Nelson de Sena em livro de 1911 e, dez anos depois, em debate parlamentar na Câmara dos Deputados.[9] E um plano federal de aproveitamento do potencial hidráulico do país, publicado em 1919, apontava a mesma bacia como prioridade estratégica. Divisa com o estado de São Paulo, a bacia foi mapeada pela Comissão Geográfica de São Paulo, revelando que, na disputa pelo conhecimento estratégico que esse mapeamento significava, o estado vizinho saíra à frente.

Nesse contexto de valorização estratégica das riquezas potenciais dos diferentes regiões do estado, pode-se compreender como determinados mapas do Album, que retratavam pequenos municípios, como era o caso de Fructal, destacavam-se por sua exuberância plástica, entrelaçando os conteúdos informativos e as motivações simbólicos em suas composições. No seu conjunto, a carta de Fructal traduzia um significado maior: a forte relação entre o seu quadro natural, dominado pelo Rio Grande e suas cachoeiras, e as múltiplas possibilidades de seu aproveitamento, entre a pesca, a navegação e, sobretudo, a captação de energia hidráulica. O mapa traduzia em imagens a certeza do progresso que o potencial hidrelétrico inspirava. Como na fala otimista de Nelson de Sena:

Quantos tramways, quantas fábricas novas e quantas indústrias; que cidades, que ondas radiantes de luz, que de maravilhas esplêndidas; não abrolharão elas, as poderosas quedas do rio Grande, neste município de Frutal?[10]

Mas o Álbum não poderia deixar de encerrar um tributo à economia e ao modo de vida rural, base da economia do estado e da maioria dos municípios. Apesar das políticas públicas de incremento à indústria e à siderurgia nos anos vinte, o ruralismo permanecia como instância programática dos sucessivos governos do período, consubstanciada em discursos e práticas que buscavam a superação da crise do café com base numa renovação de bases científicas de que foi a maior realização a criação da Escola Superior de Agronomia e Veterinária, em Viçosa.

Em diversos mapas, as paisagens e cenas rurais dos municípios surgem como imagens-clichês de fazendas ou pequenas habitações rurais, de valor mais compositivo. Em outros casos, as ilustrações carregam mais significados, como registros documentais precisos a retratar aspectos da cultura cafeeira e da pecuária mais modernizada. Em diferentes municípios são retratados em close exemplares das raças nobres dos rebanhos bovinos, como nelore e guzerat. Um exemplo sugestivo é o mapa de Turvo (Andrelândia), que mostrou ainda um aspecto muito pouco explorado entre os temas do Álbum: o trabalho. O documento cartográfico foi inserido numa crônica visual da ordem e da civilidade do mundo rural: a natureza domesticada, o trabalho no terreiro de café e no trato com o gado, o conforto de um jardim numa bem-sucedida propriedade do sul de Minas.

Os significados também se constroem pelas ausências. São muito escassas as representações ligadas às atividades industriais e especialmente minerárias. Nesse aspecto o Album silencia quase totalmente: uma única ilustração de uma mina de ouro, no município de Villa Nova de Lima (Nova Lima); uma única identificação de mina, Passagem, no mapa de Ouro Preto. Houve nesse ponto uma exata correspondência entre a representação cartográfica e a investigação estatística: o mapa acompanhou os resultados do censo de 1920, ou seja, passou ao largo dos recursos minerais e das atividades minerárias do estado.

A subordinação do mapeamento ao plano mais amplo de construção de imagens que apelassem ao patriotismo e ao orgulho de ser mineiro e brasileiro imprimiu ao Album, na forma como terminou por ser publicado, seu caráter marcadamente monumental, concebido para revelar e perpetuar aquela determinada imagem do quadro territorial. Em detrimento do caráter mais funcional com que fora concebido no programa original da Comissão Mineira do Centenário, no Album Chorographico prevaleceram as funções retóricas de maravilhamento, convencimento e sedução, conduzindo à contemplação e imediata identificação do observador com o território cartografado.

Ao provocar, no olhar e no sentimento do observador, confusão entre a beleza da carta e da paisagem cartografada, o Album disseminava e perpetuava as ideias veiculadas por todo o programa oficial das Comemorações do Centenário da Independência: as ideias de um país rico e unido, de um território coeso, de uma sociedade no rumo do progresso e da civilização. 

REFERÊNCIAS CONSULTADAS

CONGRESSO MINEIRO. Anais da Câmara dos Deputados: 2ª. sessão da oitava legislatura. Belo Horizonte: Imprensa Oficial, 1921. Discurso proferido pelo deputado Nelson de Sena em 3 de setembro de 1921.

EHRENBERG, Ralph E. Mapping and expanding nation. In: SCHWARTZ, Seymor I., EHRENBERG, Ralph E. The mapping of America. Edison: Wellfleet, 2001.

HARLEY, B. Déconstruire la carte. In: GOULD, Peter; BAILLY, Antoine. Le pouvoir des cartes; Brian Harley et la cartographie. Paris: Antrophus, 1995.

JACOB, Christian. L´empire des cartes. Paris: Albin Michel, 1992.

MINAS GERAIS. Secretaria da Agricultura. Serviço de Estatística Geral. Atlas chorographico municipal. Belo Horizonte: Imprensa Oficial, 1926.

SENA, Nelson de. A hulha branca em Minas Gerais. Belo Horizonte: Imprensa Oficial, 1911.



[1] JACOB, C. 1992.

[2] MINAS GERAIS. Secretaria da Agricultura. Serviço de Estatística Geral. Atlas chorographico municipal. Belo Horizonte: Imprensa Oficial, 1926.

[3] Pesquisa preliminar no acervo fotográfico do Arquivo Público Mineiro permitiu identificar fotografias oriundas do acervo privado Nelson de Senna, do Instituto Histórico e Geográfico de Minas Gerais e da antiga Secretaria de Agricultura, entre outros.

[4] Ver, como exemplo, o Mapa Adams County, Pensilvânia (1858), considerado um típico exemplar dos clássicos mapas murais dos condados americanos. EHRENBERG, Ralph E. 2001.

[5] Ver, como exemplo, a prancha do Departamento de Ille et Vilaine, do Atlas National Illustré, de Victor Levasseur e Aristide Michel Perrot (1861). Disponível em: http://www.davidrumsey.com

[6] Enquanto a maior parte das escalas oscilaram entre 1:300.000 e 1:600.000, há diversos mapas nas escalas extremas de 1:100.000 ou até dez vezes menos (1:1000.000). 

[7] O mapa de Araxá traz ilustrações de serviços urbanos diretamente relacionados às ideias de progresso e civilização: a eletricidade (subestação de energia e da usina hidrelétrica) e a salubridade da água (sistema de captação de água potável). A imagem da subestação é emoldurada por motivos ornamentais sugestivos da ideia de iluminação elétrica, por simularem postes ou lustres acesos, numa composição que joga criativamente com os postes representados no desenho da cena urbana.

[8] HARLEY, B. 1995.

[9] SENA, Nelson de. 1911.CONGRESSO MINEIRO. Anais da Câmara dos Deputados: 2ª. sessão da oitava legislatura. Belo Horizonte: Imprensa Oficial, 1921. p. 356. Em ambas as ocasiões Sena citou especialmente o município de Frutal.

[10] SENA, 1911a. p.XL.  

Maria de Lujan Seabra de Carvalho Costa e Maria Lúcia Prado Costa - Organização
Amilcar Vianna Martins Filho - Prefácio
Maria Aparecida Seabra de Carvalho Cambraia - Planejamento
Márcia Maria Duarte dos Santos - Cartografia
Maria Cândida Trindade Costa de Seabra - Toponímia
Maria do Carmo Andrade Gomes - História
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